Minha caneta é o cano de minha arma, porém minha escrita é meu único escudo”. DANY ROCHA

quarta-feira, 20 de março de 2019

OBSESSÃO OU AMOR INFINITO? (CONTO)





Eu olho a janela, lá fora só o vento brincando por entre as folhas do pé de mangueira da casa do vizinho. Era tarde quando ela chegou. Ao ouvir o destrave da porta, tratei em não fazer barulho. Não queria que ela soubesse do meu desespero ao não saber onde ela estava, com quem estava e o que tinha feito... Mas eu estava ali, iria ficar ali. Até o instante derradeiro. Era duro para um homem admitir, mas eu amava aquela mulher, mesmo depois de todos os anos que se passaram, com o esquecimento... Eu não queria perde-la, novamente. Apesar que de certa forma eu havia perdido tudo. Não era justo! Não agora que finalmente reencontrei o amor e consegui voltar...
Era tarde de verão, 1981. O casarão onde moro dava para ver o quintal do vizinho. Era um lugar muito bonito, com relva dourada e grandes montanhas ao longe. Tereza... ah... como era linda!  Moça de uns 16 anos, a pele clara como o dia, de cabelos longos ondulados levemente loiros nas pontas queimados pelo sol, sua boca rosada... Ainda posso vê-la correndo por entre os lenções do varal, brincando com sua irmã mais nova. ‘Como eu gostaria de ter essa mulher’! Pensava... Eu, pobre militante de família nobre, porém desprovido de beleza. Tenho uma altura boa, sou magro, no entanto o meu rosto não é muito atrativo, nasci com lábio leporino e a 02 anos descobri sofrer de Esclerose Lateral Amiotrófica (ELA). Eu sabia que estava com os dias contados. Triste sorte de um sonhador.
Nunca conheci o amor, nunca casei, nunca tive filhos. Meus cabelos começando a ficar grisalhos, denunciavam o rapaz velho e donzelo que havia me tornado devido a doença, embora só tivesse 26 anos. Entre os livros e a tevê, eu continuava minha trajetória sem graça de vida, continuava a vagar, carregado em uma cadeira de rodas pelo enorme corredor daquela casa. Eu sabia que cedo ou tarde eu perderia todos os movimentos, chegando a sufocar e finalmente sucumbir ao derradeiro momento...
Quando piorei da doença em 1983, percebi que precisava de uma cuidadora, uma pessoa que pudesse ler e folear meus livros, uma vez que minhas mãos já não obedeciam os impulsos do meu corpo. As histórias que eu lia tinham o poder de me teletransportar para outros lugares, uns mais alegres, outros nem tanto. O fato é que de todas as entrevistas de emprego feitas por minha família, por sorte, Teresa era a mais capacitada para assumir o cargo.
Não sei, mas percebi que pela primeira vez eu me senti feliz com essa mazela. Assim, pude ter a mulher a quem amava perto de mim todos os dias, e podia dormir ao som de sua voz doce quando ao entardecer, ela sentava ao meu lado e se punha a ler inúmeros capítulos dos meus livros... Que sorte a minha....
Muitas vezes, eu tinha crises terríveis ao anoitecer. Tinha espasmos, febre e calafrios ao mesmo tempo. Tereza ficava ao meu lado, tentando amenizar as dores da tão traiçoeira inimiga. Quando a crise passava, via o sorriso da doce Tereza tentando de certa forma me animar.
- Sente-se melhor? Dizia ela, fitando meus olhos e com voz doce e um leve sorriso nos lábios...
Ao ouvir sua voz, uma nuvem de paz apoderava-se de mim, me sentia protegido e amado. Nossa relação se aprofundou e Tereza não escondia mais seus sentimentos por mim. Era um ser feliz por um momento, tinha a mulher da minha vida e o amor da minha morte ao meu lado. Os dias iam passando e nossa proximidade aumentava, Tereza não me via apenas como um pobre moribundo, mas como um ser humano. Limitado eu sei, mas eu sabia que dentro de seu coração havia mais que uma relação de patrão e empregada.
Numa noite fria, acordei com uma imensa falta de ar, Tereza dormia ao lado da cama, em uma poltrona onde lia para mim, sempre ao anoitecer. Percebi seu semblante cansado, porém suave... Eu não quis acordá-la. Tentei relaxar e não fazer barulho, mas percebi que a dificuldade em respirar aumentar cada vez mais, senti meus pés adormecerem, a boca formigar, a cabeça tonta alucinava como se uma embriaguez tomasse conta de todo meu ser, eu senti que precisava ser entubado, mas aquilo me levaria ao coma. Não queria viver vegetando mais ainda, não agora em que percebi que finalmente Tereza nutria sentimentos por mim... Por um instante senti que adormeci, estava tudo escuro... Não via nada... Relaxei.
 Acordei bem, pela primeira vez, depois dessa doença não senti comprimir meu coração, a respiração estava bem melhor, eu estava me recuperando. Talvez eu estivesse entrado em coma e não percebi. Ah, por certo foi isso! A decoração do meu quarto até estava mudada... Como não havia percebido? E Tereza, onde estava? Não havia ninguém em casa. Me deixaram sozinho, mais uma prova de que eu estava recuperado. Um milagre! Podia mexer as minhas mãos. Mas iria continuar deitado. Não queria que Tereza se preocupasse ao retornar. Será que ela sabia da minha cura? Pensei... Nesse mesmo instante, percebi que meus lábios não tinham mais aquela cicatriz da fenda leporina. Será que entrei em coma e eles aproveitaram para fazer a plástica que tanto gostaria? Um turbilhão de questionamentos pairaram na minha cabeça ao mesmo tempo. Bom, eu não iria me preocupar, os médicos e Tereza iriam me explicar com toda certeza aquelas ‘descobertas libertárias!’
De repente, ouvi a porta se abrir, era ela... Tereza!
Mas... o que estava acontecendo? O rosto de Tereza estava mais velho, os cabelos um pouco grisalhos. Não. Não era ela! Quem seria essa senhora tão parecida com meu grande amor? Fiquei um pouco atordoado observando a cena daquela mulher, remexendo uma gaveta e tirando algumas receitas médicas, um porta-retratos que com delicadeza deitava-lhe um beijo a uma velha fotografia...
NÃO... Não pode ser! Não consigo acreditar! Como isso é possível?
A fotografia... A senhora... O desmaio... o despertar...
Olhei o quarto todo e me deparei com uma folha de exame onde diagnosticava Tereza com CA em estágio terminal.  Vi também, em uma folha de calendário no canto da escrivaninha: 20 de março de 2019... Tanto tempo se passou e eu não percebi!
A fotografia era eu...  A senhora, Tereza...  O desmaio a morte... Eu morri e voltei por ela, para esperá-la e buscá-la ... Por meu amor.

                 Por Dany Rocha 20/03/19




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